Hail To The Thief
(2003) Radiohead – Hail To The Thief
Track list:
1. “2 + 2 = 5 (The Lukewarm.)” – 3:19
2. “Sit down. Stand up. (Snakes & Ladders.)” – 4:19
3. “Sail to the Moon. (Brush the Cobwebs out of the Sky.)” – 4:18
4. “Backdrifts. (Honeymoon is Over.)” – 5:22
5. “Go to Sleep. (Little Man being Erased.)” – 3:21
6. “Where I End and You Begin. (The Sky is Falling in.)” – 4:29
7. “We suck Young Blood. (Your Time is Up.)” – 4:56
8. “The Gloaming. (Softly Open our Mouths in the Cold.)” – 3:32
9. “There there. (The Boney King of Nowhere.)” – 5:23
10. “I will. (No man’s Land.)” – 1:59
11. “A Punchup at a Wedding. (No no no no no no no no.)” – 4:57
12. “Myxomatosis. (Judge, Jury & Executioner.)” – 3:52
13. “Scatterbrain. (As Dead as Leaves.)” – 3:21
14. “A Wolf at the Door. (It Girl. Rag Doll.)” – 3:23
HAIL TO THE THIEF
Sim, é ele. Sentado à beira da sua mesa de pinho escandinavo, de ombros caídos e cotovelos enterrados no tampo. Baloiça pesadamente na cadeira com rodas – revestida a coro preto (lavável), armação em alumínio, apoio lombar, 5 posições predefinidas e mais 3 programáveis. Os pés batem no linóleo do escritório num ritmo ansioso. A impaciência junta com o calor provocam suores desconfortáveis, gotas quentes que percorrem a face e descem pelo pescoço para morrer no colarinho da camisa apertada até ao último botão. Amílcar sente-se demasiado sonolento para se preocupar com o que quer que seja. Bebe mais um café.
São quase 6 da tarde quando chega o estafeta à redacção da publicação musical onde o nosso crítico trabalha – ou exercita a caligrafia em exercícios de estilo aleatórios, críticas a discos e uma coluna ao lado dos anúncios. De uniforme preto colado ao corpo e acne crónica a decorar a cara, o jovem entrega a encomenda tão esperada: o novo disco dos Radiohead está agora nas suas mãos e o crítico não consegue deixar de salivar em antecipação. De maneira pouco discreta rasga o papel pardo e exibe a capa para o resto da redacção que permanece distante e desinteressada. A caminho do seu gabinete alguém lhe pede: depois diz-me se é melhor que o novo de Coldplay ou de Muse. Amílcar não se apercebeu da identidade do autor da chalaça mas pelo sim pelo não enviou um manguito (na verdade o que ele fez foi mandar uma valente caralhada, o manguito é a forma mais meiga e antiquada do gesto – a proto-caralhada. Manguito é mais bonito, não podia deixar de usar essa palavra aqui ) esvoaçando pelo ar viciado da redacção na esperança de eventualmente atingir o blasfemo.
Fechada que está a porta do gabinete, Amílcar retira o disco da embalagem e coloca-o na aparelhagem que ainda está a pagar: dolby surround, som digital stereo 5.1 e acabamentos em pinho. Perde tempo à procura do botão play, mexe no equalizador, perde a paciência, carrega em vários botões aleatoriamente, vai chamar o tipo das fotocópias – um estagiário de 19 anos que por ser mais novo tem por obrigação saber mexer nestas coisas (e que dizem que anda a comer a Lizete da contabilidade). Enquanto espera que o seu problema se resolva, observa deliciado o livrete. É sempre fantástico o artwork de Stanley Donwood, desta vez mais colorido. A banda junta agora as letras à restante informação, o que tira a piada toda a quem gosta de rir à gargalhada com os missearings dos outros espectadores durante os concertos.
O disco começa finalmente a tocar, acende um cigarro, pega no bloco de notas e numa caneta vermelha. Vai começar:
“2+2= 5”: as guitarras, a voz de Yorke tal como ele gosta, sim, está tudo no seu devido lugar. Amílcar sorri para dentro e começa a bater o pé. Aos 2 minutos a coisa torna-se mais interessante, surgem as guitarras e o baixo em crescendo, a voz torna-se descontrolada, teme-se o caos. O pé direito desiste do esforço de acompanhar o ritmo, Amílcar agora está confuso, sente-se atingido por qualquer coisa muito forte mas não sabe precisar o que foi, a música apenas dura 3 minutos mas o homem não sossega. Anota no caderninho: bom começo, estranho. a ouvir mais tarde. Comprar tabaco.
“Sit Down. Stand Up”: confirmam-se as expectativas, a voz não aparece pervertida por electrónicas ou sucedâneos, é mesmo a voz de Thom Yorke, aquela a que nos habituamos. A música vai progredindo e a batida, o piano, tudo puxa pelo crítico quarentão. Amílcar levanta-se e ensaia uma qualquer valsa errante pela sala. O ritmo aumenta e a música chama por ele de uma maneira prejudicial para a sua tensão arterial: agita os braços, esperneia e uiva desalmado. Exausto, atira-se para o cadeirão e anota: procurar esfignamanómetro lá em casa. Beber menos café. Isto começou muito bem.
“Sail to The Moon”: o nosso herói descansa, descalçou-se e embala o cheiro dos seus pés com uma música deliciosa. Lá está aquele piano outra vez, música simples e terna de uma beleza quase religiosa, alvar. Amílcar distrai-se com as nuvens lá fora, “oxalá chova”.
“Backdrifts”: nariz torcido, muitas caretas, ginástica facial justificada pela primeira grande incursão pela electrónica neste disco. A coluna da esquerda está a distorcer, Amílcar pragueja. Escreve: canção nº 4, não gosto. Arranjar piada com a palavra laptop.
“Go to Sleep”: aqui há uma guitarra acústica e um suspiro. Parece estranhamente deslocada, uma música bonita mas que não convence. No bloco de notas lê-se: Esta canção acaba com um fade out, tão 1993!!! Não esquecer de ir buscar o Martim à natação.
“Where I End and You Begin”: recomeça a bater o pé agora só com uma meia de polyester a cobri-lo. Canção com muito groove e uma linha de baixo bestial. Amílcar atira a caneta ao ar 3 vezes e apanha-a de forma acrobática – acha graça. Há quarta a caneta acaba no chão. Muitos ruídos, muitos sons preenchem uma paisagem que se adivinharia anárquica mas que no final revela uma harmonia desarmante. Não há anotações.
“We Suck Young Blood”: mais uma grande canção. Os Radiohead não estão a envelhecer nem a engordar, estão a crescer com classe. Por piores penteados que tenham tido, há momentos como este que nos fazem perdoar tudo. Amílcar apanha a caneta do chão e acha a canção minimalista e inane. Segundos depois está a acompanhar os coros e a balançar a cadeira de um lado como um pêndulo que acompanha o compasso. Acaba por reconhecer que é uma grande música e aos 3 minutos ao embarcar num delicioso delírio jazzistico, Amílcar desabotoa 3 botões da camisa. Amanhã vai estar a cantarolar isto na carruagem do comboio.
“The Gloaming”: é de estranhar a electrónica tão fria conseguir transportar-nos para universos tão belos e sentidos. Esta música é intensa e desconfortável num bom sentido. Assusta, persegue, cola-se à pele fria e boçal. O critico sente isso e mexe-se um sem número de vezes na cadeira à procura de posição. Ajusta a altura e inclinação. Despe a camisa que por esta hora se cola ao corpo como uma mortalha. Volta a apontar: estranha melodia em espiral. Tenho medo. Telefonar a pessoas que não vejo há muito que têm doenças com nomes estranhos.
“There There”: é o single, uma musica carregada de suspense, de tensão que se quebra no fim mas sem destruir aquela sensação de retenção anal. Tem passado pelas rádios com bastante assiduidade e deve ser por isso que não consegue surpreender neste momento. Amílcar sente-se mesmo tentado a passá-la à frente mas é uma grande canção e vale a pena. Aproveita para tirar os macacos do nariz , moldá-los numa bolinha na ponta dos dedos e atirar o mais longe possível. Um ficou na janela.
“I Will”: que coisa mais triste. Dois minutos de uma beleza dolente, asfixiante. Quando era mais novo, Amílcar inscrevera-se para as danças de salão que havia lá na paróquia, para impressionar uma vizinha 3 anos mais velha de quem ele gostava. O traje que era obrigado a usar nas competições ficava-lhe muito apertado, todos o gozavam. Aguentou dois anos mas depois desistiu, durante esse tempo todo só lhe falou 3 vezes. Lembra-se de todas, 40 anos depois. Ele finge que isso não o incomoda.
“A Punchup at a Wedding”: música repetitiva, aborrecida, balofa. Provavelmente o momento mais aborrecido. No caderno, Amílcar desenhou gaivotas, pássaros, um gato de gostas e o que parece ser um unicórnio cubista.
“Myxomatosis”: por qualquer razão que só a ciência saberá explicar, o nosso objecto de estudo está a dançar de uma maneira dessincronizada mas cheia de estilo. Mexe os braços e pernas freneticamente e parece-me descontrolado. As calças começam a pesar-lhe nas ancas e sem qualquer pudor, Amílcar desembaraça-se delas. Rendido à força bruta da linha de baixo que percorre toda a canção, vivem-se momentos de êxtase que este não sentia desde que lhe concederam estacionamento grátis no health club – que nunca frequenta.
“Scatterbrain”: respira fundo, uma, duas vezes. Está à janela, apenas com as cuecas e as meias vestidas. O vidro reflecte a sua a sua imagem: despenteado, suado, despido. Não importa, a música segue em jeito de banda sonora e abraça-o, envolve-o num manto diáfano de ternura e compreensão. Fixando o olhar no vazio, Amílcar faz um esforço para conter qualquer coisa que quer à força sair dos seus olhos. Deve ser mais um qualquer problema glandular, pensa. Marcar consulta para o endocrinologista, segunda-feira pela manhã, anota.
“Wolf at The Door”: diz que nunca foi dado a violência. Não, nem mesmo quando lhe batiam na escola por causa dos suspensórios ou da sua disfunção urinária, nem aí. Agora desenterrem Freud para explicar isto: o pisa-papéis saiu disparado contra o espelho, a cadeira desceu violentamente sobre a mesa, papéis voam e ele grita. A música (ainda a música) sobrepõe-se a tudo num canto ansioso e desesperado. Acompanha a raiva impossível de conter, o caos. Dá-lhe forma e atribui-lhe sentido, provoca, exige, implora. Três dicionários, um cinzeiro e parte de uma janela depois, Amílcar pára para respirar, surpreendentemente tranquilo, inegavelmente feliz. O disco acaba sem justificação aparente para aquilo tudo. A redacção assiste assustada àquele triste cenário sem saber o que dizer. Amílcar solta uma gloriosa gargalhada e foge para a rua.
Nunca mais apareceu na redacção, há quem diga que penhorou tudo, tirou um curso de ioga, comprou um cão e foi viver para uma cabana junto ao rio. Há quem afirme que tem uma retrosaria numa aldeia na beira interior. Seja como for, Amílcar é a prova acabada de que é muito difícil ficar-se indiferente a um disco como o Hail To The Thief e que o stress provocado pela vida moderna traz reumático, arteroses, conduz à perda prematura de cabelo e afectos.
Luís Miranda
a puta da subjectividade