
Escrito por | Davide Pinheiro
As recentes manobras de U2 e Thom Yorke realçam o que tem sido o mantra de vários músicos de primeira liga. A procura por modelos experimentais de distribuição que adquiram carácter definitivo. Esta busca incessante visa responder à inquietação da indústria perante o decréscimo exponencial na venda de música e o desapego do formato álbum.
Casos há em que a forma supera largamente o conteúdo e o recheio é induzido pela embalagem. Ou seja, o ruído vulcânico é motivado pela forma como a música nos chega e não pelo miolo. Catorze anos após a ameaça velada do vírus Y2K, treze sobe a entrada do euro e o 11 de Setembro e quase dez sobre o berço de YouTube e MySpace, é justo reconhecer que, apesar de novos estilos como o dubstep ou a EDM (vómito), não é demais insistir que as mudanças de paradigma estão na forma como a música nos é apresentada.
As grande discussões dos últimos anos estão identificadas: Radiohead, David Bowie, Beyoncé, U2 e Thom Yorke. Ironicamente, a todas elas correspondem álbuns médios, medianos ou menores. Não é uma coincidência. A comunicação é hoje um bem indissociável da criação e patrocinar publicações no Facebook, ter conta no Ello e comprar visualizações no YouTube pode não chegar.
Uma década em palavras-chave até chegarmos ao ponto em que os ex-campeões de venda U2 entregam um álbum de mão beijada e são apedrejados nas redes sociais.
YOUTUBE E MYSPACE
Como tantas outras experiências tecnológicas que se perderam na rede, YouTube e MySpace nasceram de geração espontânea e para ultrapassar dificuldades que a indústria nem sonhava. O primeiro pela dificuldade de partilhar vídeos filmados numa festa caseira em casa de um dos fundadores. De brincadeira de três ex-empregados do serviço PayPal a ideia milionária adquirida pelo Google, passou ano e meio. À distância de uma década, a exclusividade televisiva dos telediscos pouco ou nenhum sentido fazia. Já o morto ressuscitado e novamente moribundo MySpace nasceu no final de 2003 mas só depois de 2004 começou a ser falado até ganhar utilizadores suficientes para vir a ser a rede social mais populosa do mundo. O Facebook chegou, viu e vencer mas a memória ficou. E apesar de resgatado por Justin Timberlake, o MySpace não mais se reergueu e é talvez o maior símbolo da volatilidade do consumidor médio e também um primeiro sinal de nostalgia digital que, mais cedo ou mais tarde, acabará por entrar nas contas dos ciclos revivalistas.
IN RAINBOWS
Se Ok Computer é um dos melhores álbuns dos anos 90 por reinventar os Radiohead além da britpop e arrastar atrás de si um batalhão de novas bandas interessadas no arrebatamento de Paranoid Android ou Karma Police, In Rainbows é um dos mais importantes da década seguinte. Não por estar à altura dessa obra central ou dos posteriores Kid A ou Amnesiac mas pelo modelo usado na distribuição. Já havia netlabels e bandas pequenas a oferecer música gratuitamente na Internet mas nunca um grupo com o peso dos Radiohead ousara desafiar as regras e oferecer um álbum, ainda que usando a táctica do “pague o que quiser”. Resultado: ganharam mais dinheiro que com o anterior Hail to The Thief, ainda editado pela EMI, e abriram um precedente. As tentativas de imitação de nomes como Nine Inch Nails não produziram o mesmo impacto, como era óbvio.
SPOTIFY
Há seis anos quando o Spotify foi lançado, ninguém a não ser os seus responsáveis adivinhariam a conversão num misto de gigante tecnológico e musical. Maior que algumas multinacionais e que empresas de grande porte como a Beats que forçou um concorrente no mercado do streaming sem que os resultados aparecessem – caso se confirmem os rumores de que a Apple pretende encerrar o Beats Music, será o assumir da nota de culpa. Hoje, o que resta da indústria quase desistiu de vender música e rendeu-se aos encantos da nuvem e dos servidores.
De facto, se a relação com a ideia de posse se alterou foi graças a Spotify e YouTube que permitiram aos utilizadores ter bibliotecas gigantes de canções e álbuns à frente do monitor. Por contraste com o impacto instantâneo de YouTube e MySpace, o Spotify ganhou músculo à medida da expansão de territórios. A Portugal, por exemplo, só chegou a 2013.

WHERE ARE WE NOW?
“Onde estamos?”, questionava David Bowie no single que provocou o primeiro burburinho do ano passado. Muito sorrateiro, gravara durante dois anos em segredo e só o guitarrista Robert Fripp deixara escapar uma pista na sua página oficial sem que alguém tivesse reparado. A 8 de Janeiro, no dia do seu 66º aniversário, Bowie surpreendia o mundo (e até o seu biógrafo que afirmara ser necessário um “milagre” para que o regresso se concretizasse) com uma nova canção, o respectivo vídeo e o anúncio do primeiro álbum em dez anos para daí a dois meses. The Next Day não diverge da matriz rock clássica de Reality e está longe de ser uma obra-prima “Bowiesca” mas a aura de mistério a envolver a edição devolveu a atenção perdida no princípio do Séc. XXI e Bowie voltou ao lugar onde sempre pertenceu: o centro da cultura pop.
BEYONCÉ
O álbum anterior 4 fora uma semi-desilusão. Os singles destapados em 2013c não produziam o impacto esperado e supostamente, um álbum inteiro era deitado ao lixo. Palavra de Diplo desmentida como sempre quando já não é possível corrigir a verdade a tempo. A duas semanas do Natal, o A&R de Beyoncé garantia um álbum para 2015. Na sexta-feira seguinte, Beyoncé aterrava no iTunes sem sobreaviso. E sete dias depois, contabilizava mais de um milhão unidades vendidas via iTunes. Sem um single oficial. Um Single Ladies ou um Crazy In Love para amostra. O ruído foi tão ensurdecedor que o conceito pioneiro de “primeiro álbum visual da história” quase passou despercebido. E tal como no caso de David Bowie, o segredo foi a alma do negócio e apenas o responsável mais alto soube antecipadamente da manobra.
U2
O fiasco do ano. Na verdade, a receita Songs of Innocence patrocinada pela Apple não é nenhum modelo experimental. É uma operação de charme falhada pelo gigante tecnológico que acreditou que oferecer/impingir um álbum dos U2 aos utilizadores do iTunes era um mimo. O que mais custa a aceitar não é a ambição de Bono em recorrer a todos os meios para combater a irrelevância dos irlandeses de há dez anos para cá; é a Apple desconhecer por completo o comportamento dos seus utentes e não ser capaz de prever as reacções coléricas.
Se durante anos imperou a máxima individualista do “i” (iTunes, iPad, iPod), porque razão haveria de ser bem recebida uma intrusão nas escolhas pessoais de cada um. A Apple faz de réu neste processo mas os U2 não são vítimas. A distribuição direta via iTunes foi uma estratégia desesperada de sobrevivência que não só não abriu um precedente positivo como angariou um clube de detractores que os U2 – uma banda que desde há muito quer estar bem com Deus e com o Diabo – não conheciam. Bem feita.

THOM YORKE
Quando os “Radiohead” ofereceram In Rainbows não estavam a inovar mas sim a massificar. O modelo já fora usados por pequenas editoras e músicos anónimos. A grande diferença estava no mediatismo. O modelo agora testado com o serviço de partilha de ficheiros BitTorrent é uma experiência de raiz que se propõe a anular filtros e a criar uma ligação direta entre criador e consumidor (em menos de uma semana, já recebeu perto de quatro milhões de euros pelas vendas).
O formato pode fazer sentido para músicos de renome mas como qualquer outro, tem fragilidades. Yorke criticou duramente o Spotify por ser um intermediário entre artista e público mas é importante separar as águas. A táctica usada em Tomorrow’s Modern Boxes (título sugestivo) está assente na posse; o Spotify é um pay-per-listen. Duas formas completamente diferentes de relação com a música. Alguém imagina gerações nascentes a pagar por uma pasta de ficheiros?
----
Artigo Original publicado no site: MESA DE MÚSICA