Para ouvir lendo (ou apenas ouvir): Lucky (parte 04)

A intensa vontade de não ser miserável: recortes de um caderno de memórias*

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05 de abril

e eu gosto tanto de quando você mente de forma deslavada para mim, te faz parecer bem. fazer circunlóquios para me enganar quase te faz feliz, e por isso eu gosto, não que eu caia neles, viva uma ilusão, ou uma vida um pouco mais interessante pintada de tons tempestuosos, não.  não sei ao certo, mas acho que deve ser, principalmente, porque é essa matéria que constitui você. suas mentiras, frágeis mentiras, são o que mais conseguem me aproximar da sua essência, então aguento, insisto e peço mais.

 

06 de abril

ela é quase irritante.

 

08 de abril

ela segurava o seu cigarro com tanta leveza, como se a qualquer momento ele pudesse se desprender da sua mão, que até mesmo eu, que não curto nada que envolva muita fumaça, ficava torcendo para que ela acendesse o próximo e desse as suas expressivas tragadas, fascinado com esse seu trejeito que mostrava muito do seu modo de ser, leveza-enrijecida-estruturante-até-mesmo-contraditório. ela aspirava a fumaça quase que com dor e expulsava de dentro de si quase que com alívio, depois invertia essa ordem e assim continuava, dor-alívio, alívio-dor, às vezes dor/alívio-epifania seguida de uma outra epifania-dor. numa dessas noites, depois de cada uma das incontáveis tragadas, ela só expressou sinais de um alívio triste e incontornável, parecia quase crente que as coisas eram, assim, preto no branco, segurava o cigarro com a mesma leveza de sempre, meio hollywoodiana, exceto por parecer muito mais espontânea. e então, cotovelo na mesa, cigarro na ponta dos dedos, olhar distante, foi tomada por algo que mais se parecia tédio, afrouxou o tônus da mão e deixou o cigarro cair. cair não, mais pareceu despencar, pois, de algum modo, ou melhor, do modo que eu temi desde o primeiro momento que eu a enxerguei, aquele cigarro levou consigo, ao chão, todas as minhas idealizações tão apaziguadoras. rodeado por cinzas e uma lânguida brasa exasperante que se esmiuçava, um fim patético.

 

09 de abril

às vezes a gente não fica todo inflamado de olhos brilhando, se achando capaz de ocupar e dar sentido a uma existência futura não muito distante, nem se sente no topo do mundo, ou julgando ser mais do que se é como quem não cabe em si, e fica ali, murchinho, num canto inóspito, bem a par da situação, pensando “então é isso” ou “então é assim. pra sempre, né?” ou “é isso, não tem jeito, não” ou ainda em casos mais extremados pensa coisas como “porra, que merda, tomanocu, então NADA NUNCA vai dar certo???” & outros superlativos. daí a gente dói, e de um jeito tão familiar que mais parece doer duas vezes. com isso não sobra muito mais do que lançar olhar pro que sobrou, calcular os danos, recolher os despedaços e esperar ser preenchido de novo dessa cola-balão que é a esperança débil de insistir e querer dar certo pelo menos uma vez. aí a gente vai se recolhendo do chão, pensando em tudo que poderia ter sido, mas não foi, e, com um sorriso amarelo-desespero, espera. espera pelo que não tem nome, pela brisa-fresca de novidade, para se preencher e tentar flutuar, uns parcos segundinhos que seja, por aí. da última vez, eu fiquei por um triz de sair do chão. e de repente, não mais que de repente, a minha vida voltou ao normal, embora eu não seja mais o mesmo. nunca mais.

 

 

 

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* Excerto do meu conto de mesmo nome publicado no livro “No arco-íris do esquecimento” (2012, Ed. Multifoco). Que pode ser adquirido em: Livro: http://www.editoramultifoco.com.br/literatura-loja-detalhe.php?idLivro=966&idProduto=995

João Henrique Balbinot, paranaense de interior, gosta de viver rodeado de músicas, palavras e pessoas.  Quase sempre.

 

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