Para Ouvir Lendo (Ou apenas ouvir) | Influências e confluências
“Ninguém vai dizer que foi por amor”
Triste – acompanhado de cigarros, bebidas e medicamentos (ou seja, sozinho, como impreterivelmente estou em todos os momentos decisivos da minha vida) – finalmente aceito que o fone de ouvido, que por tanto tempo me acompanhou, não pode mais seguir comigo. No começo é sempre igual, a gente finge que não percebe as primeiras falhas e lapsos, faz vista grossa para os fios esgarçados, remenda o que é possível remendar. Mas em todas as noites estremecemos com a ideia de que, em pouco tempo, será a hora de se desfazer de mais um objeto-de-consumo. E nesse momento, eu sei, sou apenas eu que entendo a violência que essas palavras tão frias e criticadas são, frente ao meu fone de ouvido. Contra isso, nada posso fazer. Contrariado, coloco o novo fone (aquele que, por tempos, ficou ali naquela caixa, só para o caso dê.), estranho a nova anatomia. No todo, ele parece agressivo. A qualidade do som é boa, mas não se trata disso, porque nesse momento eu odeio cada pedaço desse ato sujo: o abandono, o fone intacto, o objeto sem marcas, o novo, a covardia do meu ato de deixa-lo ali à espreita, o fato de que todos os outros fones não podem mais estar comigo. Vencido, entendo que esse é o movimento da vida, principalmente aquela que é inscrita nesses nossos termos tão pós-modernos (e, por favor, um pouco de sensibilidade, não me fale agora da potência que reside nisso!), mas ainda dói. Aquele fone (daqui pra frente, meu fone anterior) me acompanhou por tantas horas, tantos quilômetros, por tantos momentos, tantas novas músicas favoritas, tantas escolhas... situações onde desacreditei de tudo e chorei vencido, ele estava ali, sem exigir nada, sem ser nada além da companhia necessária. Entendo que isso não é uma metáfora, é a própria vida que se repete nesse ato de finitude. Tudo passa e, em muitos momentos, os que nos acompanham vão deixar de ser antes de nós próprios. Não nos sobra mais do que, aceitando ou negando, reagir ao inexorável fim. Tentar enquanto podemos, seguir enquanto conseguimos. Até sermos o maldito fone de ouvido com defeito que tanto amor incitou e já não mais consegue continuar.
Quem escreve essas palavras dá mais um trago no cigarro e é surpreendido que, no seu ouvido, um novo fone estranho está. Fone que, no entanto, foi capaz de passar despercebido e ser fiel ao longo de palavras tão difíceis, sem pedir nada em troca, sem exageros. Modesto. É o início de uma nova volta na espiral do tempo, entre seres finitos, cientes de suas finitudes. Em um descuido, deixo cair o mp3 e, como se fosse um reflexo, temo pela integridade do fone que me conecta com meu mundo.
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João Henrique Balbinot, paranaense de interior, gosta de viver rodeado de músicas, palavras e pessoas. Quase sempre. Como escritor, é autor do livro de contos “No arco-íris do esquecimento” (Ed. Multifoco, 2012) e do livro de poesias “Pequenezas e outras infinitudes” (com previsão de lançamento ainda esse ano).
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